Não foi por capricho que J. P Simões insistiu para que o seu disco inaugural a solo ostentasse como título o ano em que nasceu. Afinal, trata-se do mais pessoal e intimista projecto que já levou a cabo, mas também uma data simbólica que o antigo líder dos Belle Chase Hotel e Quinteto Tati quer ver como o advento de algo ainda por cumprir.
Mais por força das circunstâncias do que por opção pessoal, a errância não tem largado uma carreira cujos primórdios remontam já ao alvor da década de 90, então como membro dos Pop Dell'Arte. "Todas as coisas que fiz até ao Quinteto Tati enguiçaram por culpa de terceiros. Por mais que tentasse cumprir, os projectos editoriais que tive até essa altura falhavam sempre por qualquer motivo. Achei, por isso, que tinha chegado a altura ideal para encontrar a minha verdadeira definição musical", revela, sem pejo em considerar que "existe um contraste imenso entre as necessidades de alguém que cria e a forma como trabalham os produtores".
Farto de esperar pelo lançamento de um disco já concluído em Maio, várias vezes anunciado e outras tantas adiado, Simões optou por fazer-se à estrada e assumir as despesas da promoção ao vivo. Agora que a saída já está calendarizada - na próxima segunda-feira deverá chegar às lojas -, o cantor e compositor vê nas dificuldades que têm povoado a sua carreira um sintoma da decadência da música, "uma das artes mais desrespeitadas e banalizadas até ao exagero" "Ela entrou em falência a partir do momento em que se industrializou e passou a sair das quatro paredes".
"Não perdi a esperança"
Por muito variadas que tenham sido as críticas que "1970" suscitou até à data, há um ponto em relação ao qual todas convergem as influências brasileiras, baptizadas pelo músico como "luso-sambismo". J. P. Simões não nega as matrizes cariocas do disco - "é como se tivesse uma alma portuguesa com um coração brasileiro transplantado", diz - mas contra-ataca: "Por que razão não endereçam essa pergunta a todas as bandas que soam como americanas?"
No tema mais marcante do disco, o homónimo "1970", J. P. lança um olhar cruel e desencantado sobre a geração a que pertence. Um ajuste de contas com o passado? "Só se for comigo próprio. Tentei encontrar as razões para a falência espiritual que hoje nos assalta. E não, ainda não perdi a esperança".
"Onde está a malta?"
Nesta "introspecção retrospectiva", não quis fazer tanto "um retrato científico" de uma geração que considera anestesiada, mas sim uma análise desassombrada que não exclui a autocrítica "Toda a gente sabe muita coisa e participa em conversas de café, mas, curiosamente, não vejo a maior parte dessas pessoas na realidade do meu país. Onde está a malta? Quem assume a cidadania?"
Ao cabo de mais de uma década de um percurso que, pese embora a passagem por vários grupos, foi sempre solitário, J. P. Simões evita as verdades absolutas, passados que foram os tempos de euforia e salutar inconsciência que marcaram os primeiros anos no meio. Mas experimente-se perguntar-lhe a quem se destina a sua música e, por uma vez, a resposta não tarda em chegar, cristalina "O meu público-alvo? Sou eu. Tento fazer o que gostaria de ouvir. É o mínimo e máximo que posso fazer".
As pequenas histórias que povoam o disco, versando desde os entes queridos às tragicomédias anónimas das grandes cidades, revelam um cuidado laborioso com as palavras. Autor do libreto de "A ópera do falhado", Simões não nega que conserva no seu íntimo ambições literárias. Mas... "sou muito desorganizado. Escrever custa-me muito. Antes que o faça, tenho que conseguir limpar primeiro todo o barulho que há na minha cabeça. O problema é que não sei bem o que procuro. Procuro clarificar-me. É isso".
"1970" ainda não chegou sequer ao mercado e J. P. Simões já perdeu a conta aos comentários que aludem à presença tutelar de Chico Buarque ao longo do disco. Nada que o preocupe por aí além, ou não encarasse o autor do recente "Carioca" como "uma colmeia e um mestre multi-estilístico, cujas canções são um exemplo de finura, argúcia e um enorme força expressiva". Mas, sem fugir à referência-mestra, aponta Vinicius de Moraes e João Gilberto como as figuras fantasmáticas de "1970" "O primeiro por este ser um disco de pequenas histórias e palavras. Gilberto também, porque a forma como trabalho a guitarra tem tudo a ver com a sua batida claudicante".
(Sérgio Almeida, no Jornal de Notícias)
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